terça-feira, 4 de maio de 2010

Habaneras

Da árvore ele comia o fruto. E deitado em sua sombra via as meninas voltarem da escola, delicadas como o fruto, e só uma restou, só da sua minissaia lembrou, mais trapo do que minissaia mas restou e começou a gostar de meninas mas pra roça ia com o pai de manhã, mais madrugada que manhã, e quando voltava voltava pra debaixo da árvore que o chão batido ao redor já demarcava o seu lugar que era só dele.

Quis virar doutor e se foi de Matanzas mas doutor não virou. E voltou pra debaixo de sempre. As meninas passavam agora não mais tão delicadas, tinham máculas que só ele enxergava. E de uma ele gostou namorou casou engravidou. E se orgulhou: oxalá vão ser dois pra ver as meninas passarem.

Então o céu de Havana desabou e choveu. E choveu como antes já havia chovido mas depois choveu como nunca. Da janela da casa, suas mãos choraram pela árvore. Mas ela resistiu, e do fruto ele comeu e o bebê ele mimou. Outros tempos se passaram, a terra se abriu e várias meninas levou, do barraco ele correu. Se vulcão houvesse por lá as lavas não queimariam sua memória. Um dia o mundo acaba, não é o que dizem?, e nesse dia o mundo acabou, ou quase, porque a árvore ficou. E os outros que restaram, como ele, andaram na lama afundaram na água reviraram madeira, sangue e caos pra abrir caminho pra quem insistia em ficar.

A decisão foi dele. Com um machado a árvore cortou mas ela se inclinou para o lado errado e não adiantou correr, a sua infância a árvore tomou. Depois o barro soterrou o que restara dos seus outros anos.

* Em Cuba o sol é chamado de índio.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Saint Paul.

São Paulo tinha pra mim um jeitão de Smiths. Eu ainda morava na Amazônia e passava as férias férias? numa Londres tropical com ônibus vermelhos de dois andares e com cabines de trânsito altíssimas nos cruzamentos da Paulista, onde os guardas lááá em cima caetanamente procuravam discos voadores no céu, maluquices charmosas do prefeito daqueles anos, um certo ex-presidente que gostava de vassouras e não escondia sua paixão pelas terras de Elizabeth e da batata quente na boca.

As noites clichês (cinzas e frias) tão diferentes do Senegal amazônico em que eu vivia suado suando odiando me levaram aos porões do Madama Satã onde no meio da pista menor tinha uma cama enorme pra facilitar a pegação. Na pista de cima sempre tinha um showzinho, lembro de um travesti que terminou sua performance nu numa banheira jogando água vermelha na platéia. O Rose Bombom ficava nos jardins oscarfreireanos e era un poquito más família, umas bandas que tocavam por lá depois se tornaram “ legiões “ e os muitos Mórriseis que sofriam ou faziam sofrer cantavam contorcidos os seus melhores versos de amor: “ E se um ônibus de dois andares batesse em nós, morrer ao seu lado seria um jeito divino de morrer.”

E ainda tinha neblina, uau, neblina e sombras nas madrugadas a dois de volta pra casa. Baby, “ me leve pra sair hoje à noite, me leve pra qualquer lugar”. Não há mais neblina em São Paulo mas há Morrisey no Ipod.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

God Save Mr. McLaren.

Ele se foi antes de Sua Majestade e se foi sob protesto, cuspindo, falando palavrão, mostrando o dedo pra todo mundo que ficou. Tá, não deve ter sido bem assim, mas foram atitudes como essas que ele “ inventou " na metade dos anos 70 que mudaram a história da música. McLaren criou seu Frankestein, um Johnny completamente Rotten e ficou tão famoso quanto a banda que colocou nos primeiros lugares da parada britânica, os Sex Pistols.

“ Deus salve a rainha, ela não é humana, não há futuro para o sonho da Inglaterra “ foi uma porrada no reino elisabetano do jubileu de prata, em 1977. O lançamento do vídeo de God Save The Queen aconteceu numa festa num barco no Tâmisa, pra onde Malcom levou seus meninos sujos e de onde eles saíram presos por desrespeito à rainha. Não faltou uma briga homérica. Nada mais punk, nada mais Malcom McLaren.

A rainha mais longeva da história da Inglaterra perto de um Oscar Niemeyer ainda é garota, mas quando a hora dela chegar, ihhhh, Malcom promete uma festa de recepção daquelas.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O maior soco na cara de todos os tempos.

Você chegou na festa como se estivesse entrando num iate, uauuuu, se uma mulher escrevesse isso pra mim eu, eu, mas que os céus me livrem da Carly Simon. Depois desse começo " meigo" a mulher disparou uma letra de arrasar até o mais insensível dos canalhas. A vingança só não foi pior porque ela nunca revelou em quem deu o soco. Warren Beatty?, Cat Stevens?, James Taylor? O da língua? Não, dessa o Mick Jagger escapou, eles ainda não se conheciam quando a namoradeira Carly escreveu You're So Vain, um hit hit hit de 1973. Agora, quase quarenta anos depois, ela até ensaiou a resposta numa nova versão da música: sussurrou um tal de David, David?

Um dos maiores mistérios do pop continua no ringue. Cortázar dizia que no conto o autor vence o leitor por nocaute mas no romance a luta é por pontos. " Você é tão vaidoso, você provavelmente pensa que essa música é sobre você. Eu aposto que você pensa que essa música é sobre você " ou o demolidor " Você está onde deveria estar o tempo todo. E quando não está, está com a esposa de um amigo íntimo " são versos de uma canção-romance ( não confundir com romântica) de uma grande boxeur ( confundir com compositora). Contrariando Don Cortázar, Miss Simon venceu por nocaute.

Ia esquecendo: você é tão vaidosa, eu aposto que você pensa que esse texto é sobre você.

You're so Vain ( Carly Simon) - http://www.youtube.com/watch?v=mQZmCJUSC6g

sexta-feira, 19 de março de 2010

Ótima aterrissagem.

Ontem o escritor Marcelino Freire me convidou pra uma noitada numa das suas oficinas de escritura, turma das boas, é legal ver gente que acredita em literatura. Fui super bem recebido ganhei fotos da Fernanda Grigolin ouvi textos do caralho li trechos do meu livro que vem por aí fui embora querendo voltar. Obrigado amigo Marcelino valeu turma, estamos todos no mesmo voo.

Trecho do livro:

O Jô foi meu amigo de colégio, vendia carteira de couro num pano estendido na calçada da Rodolfo Dantas quando porra, Jô, caralho... faz o quê, vinte anos? vem morar no meu hotel... não quero saber, porra, tô mandando. O cara da turma que mais entendia de música tem dentes podres, o que sobrou deles, um quase mendigo que bebe uma cachaça vagabunda que vem numa garrafinha plástica em forma de granada e toma sei lá quantas por dia. Me tornei wagneriano por causa dele. Um dia me chamou na sala do apezão lá da Siqueira Campos com Atlântica, abriu a janela, tava rolando o maior pôr-do-sol, Wagner no volume máximo, ele começou a reger uma sinfonia do caralho me arrepio só de lembrar e me falou pra não tirar o olho duma árvore enorme um pouco abaixo da janela e aí escureceu e os morcegos vieram, subiam até a janela e desciam em zigue-zague parecia que o Jô tava regendo eles também, porra Jô, o que aconteceu com o cara que me apresentou os Doors e os Stones no quarto soterrado de vinis onde a gente passava tardes elétricas. Tu decorava refrões eu escrevia canções: um dia alguém vai roubar frases minhas pra despejar no ventre quente da mulher amada, alguém vai roubar frases minhas. A gente pensou em ter uma banda lembra? mas ninguém tocava porra nenhuma, só punheta. Contou que perdeu a mãe quando tinha dezoito, pouco depois de mudar do colégio. O pai casou de novo, mas não durou muito: a empresa quebrou, depois o infarte, sobrou a madrasta que ajuda com uns trocados. Pagava nove reais por noite numa pensão na Candelária, aqui paga quando pode. Puxa o saco, seu sotaque british é perfeito, Jeff. Derrama histórias da temporada em Londres e os olhos de Sir Boca Suja procuram no teto um ponto de fuga, não há mais tempo, não haverá Inglaterra. Eles se dão bem. Jeff esquece palavras em inglês e coloca a culpa na idade. Jô finge que acredita. Jeff ensina como se joga cricket. Jô finge que aprende. Jeff diz para os hóspedes I live in London, estou aqui passando uma curta temporada, assuntos de família, sabe? O Rio é fantástico, não?

Marlon se apaixonou pela garota tarde demais: ela se cansou dele. Sobraram o pulgueiro algumas lembranças esperma contido. Marlon dançou o último tango no meu DVD e fez Djuly chorar. O funk assassinou a tristeza numa quebrada de Nova iguaçu e eu ressuscitei a filha da puta com uma passada na locadora ( às vezes eu me empolgo mostro uns filmes cabeça falo do futuro do pão quero aculturar e elas só querem o meu leitinho, o jato na cara, eu me empolgo e ela quem é esse Reminguei aí? o moreno do açougue não me fala essas coisas). Djuly ainda chora, fudeu, compliquei seu mundo de esgoto precário e ônibus lotado. Ganha uma merreca por semana pra trocar fralda e ser xingada pela velha com Alzheimer. Pai desconhecido, mãe drogada, quatro irmãos, barraco de dois cômodos, vinte anos, mora com a tia, mas ela só gosta de mim quando tenho algum dinheiro.

sábado, 13 de março de 2010

A Nuvem

Vamos pra Havana, baby, o vento do Malecón ainda é livre ainda é pra despentear o meu cabelo o seu cabelo e as ondas que batem na mureta ainda são livres pra bater na mureta e nos molhar com pingos grossos de lágrimas salgadas. Não te darei chocolates porque no hay, não te darei perfumes porque no hay, não te darei um banho de leite na flor de tu cuerpo porque no hay leite mas o cálcio que te faltará não impede que segures na minha mão e me leves por lugares nunca antes imaginados e tantos outros ados.

Na esquina da Rua Amargura com San Ignacio na frente do hotel que não tem teu nome mas que batizarei com tuas quatro letras falaremos alto, gritaremos sim gritaremos, nossas vozes se elevarão e se juntarão a todas as vozes suspensas na grande nuvem cinza-liberdade que paira há décadas sobre Havana esperando sua hora pra chover, a chuva ainda é livre pra chover, baby.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Era uma vez a inveja mas eu tive que matá-la.

Foi isso que senti quando li o colombiano que não é Garcia muito menos Marquez é Efraim e Medina Reyes. Era uma vez o amor mas tive que matá-lo conta as aventuras de Rep e sua turma na Cidade Imóvel e seu sofrimento por ter perdido uma certa garota, aquela, lembra?, que nós homens sempre perdemos numa esquina bêbada numa noite traída ou nos subterrâneos do nosso reduzido cérebro. É a maldição de todos nós músicos, pintores, escritores, dentistas, advogados, médicos, tubarões financeiros, mas acima de tudo, vivedores.